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Eu não gostava da escola



Fui para a escola com 6 anos. Ao longo de quase três anos e duas professoras, uma muito idosa, solitária e rabugenta, outra muito nova, jovem mãe e esplendorosamente bonita,  o dia-a-dia foi um enorme sofrimento.  Apesar das expectativas de cada Setembro, da novidade que espreitava em cada início de ano, os meus primeiros anos numa sala de aula são das memórias mais tristes da minha vida. Não é pois de agora o desajuste… Para além das questões de personalidade, e do pesado silêncio que me obriguei a fazer sobre isso junto da família – até que resolveram intervir..-  cada manhã de aulas era um calvário. E todavia..era boa aluna, ninguém me agredia ou castigava…

O que sucedia então?... A lógica escolar, a indiferenciação da cultura, a irracionalidade do trabalho -  digo eu agora.. - sufocavam-me: as filas dos bons, dos maus e dos médios, a dureza da (s) professora(s) para quem não aprendia depressa, a normalidade da violência (física e não só) que se expressava no discurso e na ação, o esbatimento de cada um naquele todo amalgamado em que me esforçava por passar despercebida também, porque  os sucessos eram apontados ironicamente - aos outros que os não tinham para os humilhar, a mim e a quem os obtinha com alguma facilidade, com uma desagradável irritação mal disfarçada – “Pois…já sabe tudo..” 

Lembro-me de pensar que mal havia se eu já sabia? E os que não sabiam logo, decerto não teriam culpa -  porque eram castigados? Porque não lhes voltavam a  colocar as   tarefas de outro modo em vez de  transformar  a tarefa seguinte num poço de pavor? …mas na realidade percebia pouco…Pior ainda, aquilo que me revoltava parecia ser tido por natural pelas meninas e meninos alvo dessa rispidez…era prática coletiva ir esperar a professora ao almoço, com grandes sorrisos e até prendinhas. A mesma professora que lhes tinha aplicado insultos e reguadas em abundância antes do almoço, cuja simples presença nos apavorava , que nunca olhava para os alunos….E eu ia também, claro…, torcida de medo de me destacar pela diferença face ao grupo – o pior que pode acontecer naquelas idades…

Tudo mudou – ou eu não estaria provavelmente aqui a escrever esta crónica como professora. Mudou quando o meu pai, embora não conseguisse perceber o porquê da minha reação (cheguei a adoecer) , decidiu que, se eu estava mal, era preciso mudar...até conseguir  ficar bem. Nunca terá sabido quanto lhe estou grata, pela inteligência que revelou.  Possivelmente eu também não lhe saberia explicar.
Mudei de escola e de professora. Para uma  escola pública em nada diferente das anteriores. Mas com uma professora verdadeira. Que iluminou a minha vida, e, julgo poder dizê-lo, a de todos os que ela ensinou. Por nada de especial. Simplesmente porque apostava em cada um, porque todos os  minutos da aula, incluindo os ralhetes que também havia, eram impregnados da vontade vibrante de nos fazer perceber. Com uns olhos castanhos enormes e risonhos, cheios de expressividade, que ela abria muito quando se zangava, ou quando ria com os nossos disparates, toda ela era iluminada pelo amor ao conhecimento, pela convicção de que precisávamos de aprender tudo muito bem, pelo impulso de  fazer todos perceber, pelo treino e muito esforço que exigia, alguma zanga também, mas que ela vivia connosco , contagiando-nos, explicando, ralhando, pondo-nos uns com outros até acertar um problema, empurrando cada um para o máximo que ela sabia ser possível.

Acima de tudo, nós sabíamos que ela acreditava. Sabia qual era o lugar único dela nas nossas vidas. E gostava daqueles seres ainda muito toscos que nós éramos. Gostava de nos ensinar. Era uma professora.
         
“ …sei, e disso não tenho dúvida, que há quem saiba transmitir conhecimentos e que transmitir conhecimentos é como criar de novo aquele que os recebe.
          Os alunos nascem diante dos professores, uma e outra vez. Surgem de dentro de si mesmos a partir do entusiasmo e das palavras dos professores que os transformam
          em melhores versões. Quantas vezes me senti outro depois de uma aula brilhante. Punha-me a caminho de casa como se tivesse crescido um palmo inteiro durante cinquenta minutos.
          Como se fosse muito mais gente. Cheio de um orgulho comovido por haver tantos assuntos incríveis para se discutir e por merecer que alguém os discutisse comigo.” 

         
Valter Hugo mãe, JL, Setembro 2012

Muitos anos mais tarde, sentada num café do lugar onde fui aluna desta professora, uma senhora de outra mesa  chamou, interrogativamente,  o meu nome. Nunca mais nos tínhamos visto.  Ela teria quase oitenta anos. Os olhos cheios de luz e o carinho atento  continuavam lá.  Na minha vida também

In Roldão, M.C ,  Falas dos Dias que Passam, 2015, pp.35.37,Universidade Católica Editora


Correspondendo com prazer ao  pedido de um testemunho pessoal para o Projeto Escola Amiga da Criança, cuja relevância me apraz sublinhar, deixo  aqui um olhar verdadeiro, uma memória intensa construída em experiências de sinal contrário: uma que julgo iluminar um pouco o que não é , não foi, para muitas gerações de crianças, uma escola amiga, que as estimulasse, as fizesse sentir-se pessoas de valia, que lhes desse o direito a sonhar-se num futuro a que tinham e têm direito.  E outra situada na mesma escola quando faz cada um crescer, em harmonia consigo, através do conhecimento e da experiência vivida com alegria. No centro de uma  escola amiga da criança está sempre o professor – esse que evoco aqui como uma pessoa, um profissional decisivo, alguém que vive e  ensina e  faz outros viver e aprender, através dos atos simples do quotidiano escolar, quando carregados de profissionalismo, conhecimento, competência e humanidade. 

Sou professora. Formei muitos professores, Vou a muitas escolas. E continuo a pensar que o essencial de uma escola amiga das crianças não acontece “ao lado” da escola curricular, dita formal, mas “por dentro” dela.  Como John Dewey,  nos anos iniciais do século XX, luminosamente acentuava, a escola não é a preparação para a vida, é a própria vida. Não sei bem, até hoje, o que significam as numerosas metáforas futuristas em voga, desde a  Escola para o século XXI, a Escola do Futuro e muitas outras...O futuro cada vez menos se deixa aprisionar em retratos prévios... Mas as pessoas, as que na escola se desenvolvem e aprendem, essas sim, viverão os seus futuros como presentes,  tanto mais ricos  quanto mais tiverem vivido na escola uma vida estimulante, acolhedora, securizante, mas desafiante.  Uma vida que  comporta dias com sentido, atividades de pensar e de fazer,  amigos, alegrias, tristezas, ajudas, aulas, trabalho, caminhos.  Que se instila nos nossos sentidos e se agarra aos nossos nervos para sempre. Que faz de nós, em boa parte, as pessoas mais ou menos realizadas em que nos vamos tornando.


Maria do Céu Roldão










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